Foi num sonho, agora já bem
esquecido, sobre você, que tentei recortar meus pensamentos em blocos, que
tentei equalizar meus sentimentos em notas. Neste sonho a agulha afiada, de veneno
senil, que se alastra do lado direito da minha cabeça, conformou-se num tipo de
tom abstrato, mecanismo para compor a tablatura de dores e espasmos que eu
julgava ser meu próprio sentir. Neste sonho matemático, o devir catedrático do
sangue a circular foi-me percebido como um contraponto também circular de uma distante harmonia, tendo a
elocução pesada do coração, elevada pelo asseio do oxigênio pulmonar, ajudado
em seu impulsionamento rítmico. Aos poucos estes fenômenos todos, tão prontos a
sintetizar o que teimamos em chamar “estar vivo”, vão se volatilizar. O que eu
era, e o que me parecia que jamais deveria deixar de ser desde então, residia
nestes impulsos nervosos no cérebro, uma nuvem espessa e tempestuosa, alinha
mestra deste corpo amorfo, donde sentia-se o gosto na boca, o ácido queimando
no estômago, o toque da pele na roupa. Mas cabe não esquecer que, de alguma
forma muito exógena, este ainda era um sonho sobre você. Porque aquela célula
atônita, febril e violenta que residia na nuvem tempestuosa e envia impulsos e
a mesma mensagem sem parar, este que também era um elemento viril desta
paisagem sinestésica e sonora, eu sabia que (sempre soube), abstrato que fosse,
ele dizia algo sobre você. De uma maneira não muito clara, essa coisa, sendo
algo, reclamava da ausência de você. Não que isso deixe de ter apenas marginal
importância, mas estas estranhas relações hierarquias e correspondências, ora
recortadas, ora atuando em harmonia e contraponto, me elevara à, de certa forma
elegante, noção de que tudo aquilo que sou é uma música em constante execução,
reverberando-me também a desconfiada noção de que sou eu mesmo, incrustado
dentro das células, minha própria partitura a ser tocada. Neste sonho, cada vez
mias autoconsciente (e distante da consciência de ti que o havia despertado),
não pude deixar de me perguntar onde estava, afinal, a música, quando ela não
estava mais sendo executada. Quem guardava, afinal, o livro escrito em meu
corpo, assim que suas reverberações cessavam, e o instantâneo das informações
produzidas pelos sentidos deixava de existir como algo perceptível (mas se
mantinha como algo legível). Foi então que, no fim, bem no fim deste sonho
disparado por uma longínqua consciência sobre ti, que eu me inteirei de sua
valiosa contribuição. Não bastava, afinal, que eu fosse o código e sua
inscrição. Que eu fosse a partitura e a música. Perecível, eu era também o
instrumento, um pedaço de papel. Era a música, o instrumento e sua execução.
Como desafio, a que não me proponho resolver aqui, resta saber quem é o músico:
se eu mesmo, se alguma outra coisa ou até mesmo, num sentido mais profético, se
você.
Um comentário:
Não é uma poesia?!
Adorei!
E curti o vídeo tbém, hehe
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