10/05/2012

PARTITURA


Foi num sonho, agora já bem esquecido, sobre você, que tentei recortar meus pensamentos em blocos, que tentei equalizar meus sentimentos em notas. Neste sonho a agulha afiada, de veneno senil, que se alastra do lado direito da minha cabeça, conformou-se num tipo de tom abstrato, mecanismo para compor a tablatura de dores e espasmos que eu julgava ser meu próprio sentir. Neste sonho matemático, o devir catedrático do sangue a circular foi-me percebido como um contraponto também  circular de uma distante harmonia, tendo a elocução pesada do coração, elevada pelo asseio do oxigênio pulmonar, ajudado em seu impulsionamento rítmico. Aos poucos estes fenômenos todos, tão prontos a sintetizar o que teimamos em chamar “estar vivo”, vão se volatilizar. O que eu era, e o que me parecia que jamais deveria deixar de ser desde então, residia nestes impulsos nervosos no cérebro, uma nuvem espessa e tempestuosa, alinha mestra deste corpo amorfo, donde sentia-se o gosto na boca, o ácido queimando no estômago, o toque da pele na roupa. Mas cabe não esquecer que, de alguma forma muito exógena, este ainda era um sonho sobre você. Porque aquela célula atônita, febril e violenta que residia na nuvem tempestuosa e envia impulsos e a mesma mensagem sem parar, este que também era um elemento viril desta paisagem sinestésica e sonora, eu sabia que (sempre soube), abstrato que fosse, ele dizia algo sobre você. De uma maneira não muito clara, essa coisa, sendo algo, reclamava da ausência de você. Não que isso deixe de ter apenas marginal importância, mas estas estranhas relações hierarquias e correspondências, ora recortadas, ora atuando em harmonia e contraponto, me elevara à, de certa forma elegante, noção de que tudo aquilo que sou é uma música em constante execução, reverberando-me também a desconfiada noção de que sou eu mesmo, incrustado dentro das células, minha própria partitura a ser tocada. Neste sonho, cada vez mias autoconsciente (e distante da consciência de ti que o havia despertado), não pude deixar de me perguntar onde estava, afinal, a música, quando ela não estava mais sendo executada. Quem guardava, afinal, o livro escrito em meu corpo, assim que suas reverberações cessavam, e o instantâneo das informações produzidas pelos sentidos deixava de existir como algo perceptível (mas se mantinha como algo legível). Foi então que, no fim, bem no fim deste sonho disparado por uma longínqua consciência sobre ti, que eu me inteirei de sua valiosa contribuição. Não bastava, afinal, que eu fosse o código e sua inscrição. Que eu fosse a partitura e a música. Perecível, eu era também o instrumento, um pedaço de papel. Era a música, o instrumento e sua execução. Como desafio, a que não me proponho resolver aqui, resta saber quem é o músico: se eu mesmo, se alguma outra coisa ou até mesmo, num sentido mais profético, se você.


Um comentário:

Fabi disse...

Não é uma poesia?!
Adorei!
E curti o vídeo tbém, hehe