24/03/2008

Liquefeito

This were to be new made when thou art old
and see thy blood warm when thou feel'st it cold.
"...fora tornar em novo as coisas velhas
E ver o sangue quente enquanto engelhas"
Shakespeare

Quando chove é que me abrigo mais,
no colo insano que doma a natureza;
escondo de mim a face mais tenra,
abro os olhos por fechá-los,
aqui dentro
as gotas
não
caem:
incêndios avançam sobre as poças escuras da manhã que chega,
devagar,
pelos confins da noite...

O mundo está partido,
liquefeito,
uma bola,
o céu,
as bandeirolas,
vozes,
- sinfonia de carros -
as cores, vivas
mortas,
tudo coeso
na densidade certa daquilo que vive.

Mas no espaço entre os germes da matéria
reina uma selvageria tonta
ébria de alma
a derreter eternamente o cimento
das coisas.

Escorro...

Léo Menezes

6 comentários:

Anônimo disse...

De quem e?

Gostei!

Traduz esse ser estar urbano, poético.... O cimento quebra sim,parte, finda, tudo se transforma. E a gente vivendo aqui, um dia de cada vez.

Bic

Fabi disse...

Essa aí é do Léo Menezes.
Ficou muito boa, a imagem da poesia é linda.
Esse final é demais.

Anônimo disse...

Quando o "O mundo está partido, liquefeito" você encontra abrigo em si mesmo, em comunhão com a sua essência, que é uma espécie de gruta onde tudo escorre, menos o que ela contém, certo? Foi isso que eu senti ao ler o poema. As águas do mundo levam embora todas as coisas, inclusive derretem o cimento das boas também, mas sempre há de ficar algo sólido, algo dentro da gente que não se abala jamais e é sempre o melhor abrigo. Às vezes o único...
Percebo um otimismo sutil e bem-vindo que se sugere dentro da melancolia.

Léo Menezes disse...

Falo de objetos aleatórios do cotidiano, digo "tudo coeso", falo da densidade da matéria, digo "selvageria tonta". Tento fazer o encontro do concreto e do inefável, da ordem com a desordem. Isso na segunda estrofe; porque na primeira tento inserir o leitor exatamente no paradoxo entre que é o prazer externo que a chuva me causa e a aridez interna, afinal "aqui dentro as gotas nãom caem"... Foi mal, mas aproveitei para "viajar" um pouco neste poema.

Anônimo disse...

ouquei, intindi.
:P

Ciro disse...

Sensacional! Leo cada vez mais catedrático em seus poemas. Poemas inteiriços, adultos, sem aqueles resvalos de incompletude e indefinição dos poemas mais "jovens". Este poema é a consagração de uma visão ultra-sensível da realidade. O poeta realmente enxerga além da normalidade. Mas quando é que podemos realmente nos considerarmos verdadeiros poetas? Eu não sei. Leo pode me dizer.

E mais: se eu disse que Leo havia se tornado um poeta estóico, digo agora que se tornou pré-socrático: de uma poesia de comunhão para uma poesia do enfrentamento. Fico com a segunda.

Ciro