27/09/2007

O pai de todos

Bem, acho que é hora de testar e ver como funciona isso aqui, não? Vamos tentar nos lembrar que o grupo sempre existiu - antes mesmo de ter a função de admitir a poesia como uma possível saída para sinuca-de-bico-da-realidade - como uma maneira de emparelharmos vozes e expressões e de tentarmos driblar esses códigos das coisas que nos prendem numa espécie de camisa-de-força espiritual. A poesia tenta transcender, mas não transcende. É um fracasso assumido - não nos resolve - mas, no ato de criá-la, temos plena consciência da necessidade da ilusão, temos a vontade de acreditar no véu, de mergulhar fundo na fantasia e no delírio: porque a imaginação é também parte do real. Realidade essa que tem sido negligenciada pelo esmagamento do real "real"....

Portanto, vou postar um poema muito importante para mim. Foi escrito para o meu pai, que esteve muito doente. Procurei fazer uma reflexão (esse é - alcunha de meu próprio pai - um poema-ensaio) sobre o poder da precedência, da antecedência, da paternidade, dos ciclos de renovação. Espero que gostem. Este poema antecede a todos os muitos que postaremos aqui. Assumo essa responsabilidade. Vamos trabalhar pensando no que nos antecede e no que antecederemos. Só assim encontraremos nexo grupal.

Pater

Paternidade é o pai da antecedência.
Faço uma viagem ao mundo dos micróbios:
Há um descolar-se meio tonto, meio sem saber.
Um filho deve nascer de um descolar casual.
Sofre de um trancamento masculino.
Passa por um apartamento genético.
Como num timbre matemático, o filho (filho do pai, não da mãe) vai
[ziguezagueando as coisas, quase pronto para se encadear, se dividir [novamente.
Sem umbilicalidade, o filho acena para o pai, de longe.
Encadeia-se como se fosse um efeito do cosmos, uma afeição
[automática das coisas por elas mesmas.
Compaixão por substancialidade.
O filho desenrola-se, ainda um apêndice, no matagal cheio de pulgas [do mundo.
O pai estatifica-se em seu ato primordial de preceder.
Antecede, e isso basta. Isso cria e delineia o próprio ato parental.
Pai, de uma importância cronológica, sintática.
Sem austeridade, o pai se aloja em sua posição de anterioridade, que
[vai se desintegrando.
O mundo se abre, vetusto.
O pai se torna topo da cadeia.
Atinge o céu, de certa forma; ascende.
Há um momento, então, em que o filho escreve a liturgia das coisas.
O pai se torna lenda.
Vale-se de seu princípio como princípio.
O filho é obrigado a mergulhar num universo passado
e costurar uma partitura de mundo.
Procura um aceno cíclico,
adentra nas pupilas do pai,
e recolhe, em assombro mitológico, os signos de uma existência em [origem.
O que é remoto cicatriza a ambigüidade do que é segundo, prole.
Completo, re-significado, o filho então também se torna pai.
E passa também a legar.

Ciro I. Marcondes

5 comentários:

Nexo Grupal disse...

sobre a transcendência da poesia:
se a poesia está mesmo mais para Proteu do que para Aristótoles - vide A.Cícero, ela não copia, ela transforma, recria, desfaz os mitos dos clichês lugarens-comuns dos signos das palavras e das relações entre as palavras, reinventa? se a poesia não trascende, o que trascende? então trascendência nem há.

Anônimo disse...

Cada inseto
é um neto
de outro inseto
e assim num vôo reto
de uma lei estabelecida
de driblar a morte com a vida
cada neto
de inseto
fica mais forte
tomando inseticida

Anônimo disse...

É isso: transcendência não há. Isso é uma fantasia idealista.

Anônimo disse...

Parabéns I. Ciro, muito bonito o Pater.

Como não se sensibilizar com versos como:

'procura um aceno cíclico,
adentra nas pupilas do pai'

com imagens como

'assombro mitológico'

ou com seus loucos lindos devaneios sobre o tempo?

Mateus Trabelo

Anônimo disse...

Sensacional essa do Mautner. Isso é letra de música ou poema mesmo?