14/11/2009

ODEIO A VIDA

1: O pessimismo é um humanismo

Odeio a vida.
porqueporqueporqueporqueporque
Odeio a vida.
masmasmasmasmasmasmasmasmasmasmasmasmasmasmas
O esgoto é vida.
O cartaz é vida.
O líquido bolorento q’enviesa o estômago (marrom como fezes [humanas)
é vida.
Eu amo a luz.
A luz navega as cores.
O verde consome as narinas.
O ácido consome o estômago.
O cheiro de pneu e lata encardidos enferrujados
são sonoros silêncios crespos do labor limítrofe das bactérias.
Eu amo as bactérias.
Os carros são vivos.
Andam em ladrilhos com apoio do motor roncar dinossauro.
Os carros são plantas.
O sexo dos carros, vejam bem, é parente do sexo das bactérias.
O sexo das bactérias não tem orgasmo.
Bactérias são carros.
A luz e a matéria são sexo.
Bactérias, sem boca, abocanham a luz.
E da luz, como Jesus, fez-se o pão.
E pão testa como os olhos.
O pão tem cheiro duro.
A luz só existe quando as coisas são nuas.
Parece-me, também, que o concreto está vivo.
Mas o ciclo – câncer – de células tontas está sempre morto.
Odeio a morte.
Os cílios dos gigantescos protozoários são remos para a morte.
Há flores demais em tudo o que é morto.
O corpo do meu cão floresce em jardins vermelhos e verdes.
Há vida demais em tudo o que é morto.
O frio sobressai-se, vário, como escuro brilho vivo do espaço sideral.
Eu amo o escuro.
A luz são ondas escuras que se entrecruzam sob a nudez
[montanhosa dos seios, dos picos, dos altares.
As formas são escuro como são pálido as nuvens chuvosas de dias
[vaporosos.
As bactérias e o vapor não têm qualquer ligação.
O que é sobressalente peita a vida como um pico de heroína.
Odeio o purgatório.
O amor parece-me mesmo metaforizável como uma casca de uma
[ferida pequena na epiderme: expurgo.
O casamento é mais vivo que o amor.
Eu amo o casamento.
As bactérias são devoradas pelos protozoários.
Os protozoários, titânicos, deixam-se seduzidos pela incorporação às
[bactérias.
As bactérias tornam-se protozoários na medida em que seus
[fragmentos componentes contábeis volatizam-se, espaçados, pela [massa latifúndia dos protozoários.
Os protozoários, por sua, vez, se tornam 1% bactérias.
Já os peixes, estes nunca olham para trás, porque não têm pescoço.
Eles se enflecham em direção à morte, já que, embasbacados por
[seus cérebros de pedra, perdem aquilo que, parece, existe apenas [entre os mamíferos.
Os peixes não escolhem, e por isso não olham para trás: nem para os [lados.
Os peixes escolhem a morte.
Eu odeio a morte, mas amo os peixes.
Os moluscos são salgados porque são 30% sal;
o que é mais sal é mais vivo do que o que é mais água.
Ostras são fibrosas no contato marisco palativo. A casca está viva. O
[molusco apenas caminha para a morte (como os peixes).
Os carros se inspiram como o carbono rangente.
As bactérias são homens que deram certo.
O vento desaba em escada; é maior que as colônias de fungos.
Os protozoários são milagre exatamente como aqueles peixes que [voam – eles voam.
A vida é música.
Eu amo a música.
masmasmasmasmasmas
é ausente:
o desconforto zune n’operar salgado do cérebro.
A música é má.
Eu amo a maldade, mas odeio a má música.
A pólvora é preta, mas é vida.
Não pode, e nem deve ser viva uma flor.
Dinossauros são ônibus.
Ônibus fazem sexo daqueles que estremecem o chão de terra
[mesozóica, lar dos avôs das bactérias.
Ônibus são carros e vivem atravessados pela luz, que exige deles a
[flor (que não é e não deve ser viva) que se lambe do solo, e se [lambuza com o sêmen sensual dos carros.
O óleo também é vivo, porque tem brilho e tem escuridão, enquanto o
[álcool parece pútrido e morto, porque vem da cana, lânguido [cadafalso que se precipita ao solo, lar dos dinossauros, as [montanhas vivas que nunca foram vivos, apesar de serem ônibus, e [ônibus são vivos.
A porra não é o óleo dos homens.
Dinossauros são carros.
Carros são bactérias.
Dinossauros não são bactérias.
O solo não é música.
A música não é cana.
Álcool não é óleo.
Óleo não é o escuro.
O escuro é a paisagem daqueles que não dão importância à luz.
A luz não se parece com o pão, já que o pão caiu do céu, e a luz
[brota do escuro, que está presente no óleo e especialmente no [coração dos homens.
O casamento certamente não é tão escuro quanto o amor, que titubeia
[e é meio morto, meio vivo e composto 30% por sais, como os [moluscos.
Os dinossauros, sim, são carros e defumaram os céus mesozóicos
[com a fumaça poluente que entrinca a camada de ozônio à qual tinha [acesso pelos seus ânus bola de futebol.
Os carros, sim, só querem se reproduzir com seu sexo gostoso
[humilde como os animais mais frágeis, quebradiços como os vidros diante do vento, que também é vivo e sombrio e se delicia com as manhãs chuvosas passeios pelas fossas respiratórias de todos aqueles organismos quase vivos que com certeza um dia qualquer voltarão a ser pedaços de poeira planando sobre o oceano.
Folhas caídas sobre o assoalho.
Bancadas de madeiras sob blocos de registros de cidades pequenas.
Tijolos vermelhos jogados de um lado a outro.
Átomos de hélio que navegam odisséicos em direção ao Sol, onde
[esperarão a supernova e se voltarão ao tempo perguntando-lhe as [boas novas do universo.
A supernova é morte.
Odeio a morte, mas amo a supernova, que resgata o trilho das
[estrelas e bota o escuro, pulsante de vida adormecida, no caminho de [volta ao passado, que se encolhe até se concentrar todo num ponto [que não se lembra do que é o tempo.
E isso não é vida nem morte,
e por isso o amo.

2: Realismo não é naturalismo

Ciro Inácio, 2003.

11 comentários:

Fabi disse...

Acho demais!
Muito bom!

Anônimo disse...

Posso passar pra frente este seu poema?

Beijos
Bic

Ciro disse...

Como assim, bic?

É um poema de ódio. Talvez não convenha passar pra frente...

bjs

Fabi disse...

é um poema de ódio mesmo, se o ódio rendesse sempre frutos como esse (óóó!), ehehehehehe

Ciro disse...

Já faz anos que escrevi isso, e ainda é o meu poema que mais tenho prazer em reler.

Anônimo disse...

Viagem,Ciro!


Ok, pensei em mandar para um grupo de bicicleta, porque acho que é assim que muita gente está se sentindo. Mas deixa.


Viceral este seu poema?

Bic

Anônimo disse...

Ao invés de passar pra frente, bic, sugira pro pessoal acessar o blog. Dá no mesmo e ainda gera leitura do nosso material.

bjo

Menezes

Anônimo disse...

"Já os peixes, estes nunca olham para trás, porque não têm pescoço": acho que este é meu verso preferido-favorito-predileto de nonsense de todos os tempos!Hilário! eiliko

Fabi disse...

Eu não me canso de ler essa tua poesia

Ciro disse...

Fabi, essa é só a 1ª parte. A segund aestou escrevendo há anos e a terceira nem comecei. É um work in progress eterno.

Isadora disse...

Forte. Acho ótimo quando a poesia reencontra sua força