22/08/2008

Aprendizagem

E quando se dissipar a cerração,
aberto como luz difusa no tempo,
um olho de fogo varrerá o mundo



Escutei um velho hino em tua homenagem
[os enterros, dizem, devem ser mais alegres],
sepulto-te sob a dança harmoniosa dos pássaros,
à luz de mil sóis, pelo valor do que se vai
languidamente, perder-se nas trevas.

Do banquete ofertado,
colhi de própria lavra
o mais doce dos méis,
o olhar delicado entre tantos mundos.

Cortei, também, em desagravo,
peles sensíveis,
em busca da carne
que purifica a alma.

Todo canto que louve
a santidade daquilo que somos
deve ecoar além dessas árvores
onde agora estamos em desalento.

O gesto sincero
vem do fundo da alma satisfeita.

Quão verdadeiro meu desejo se torna
se aqui dentro a vida
é varrida com um sopro?

A beleza de tudo é sua própria doença.

[as folhas amarelam ao redor de nossas
lembranças.]

O que celebro, em louvação,
não é tão claro ou escuro,
não é de nenhum deus,
nem de mim ou de ti,
nem do mundo.

Aquilo que quero é o sentido do que tenho.

Criei outros olhos
contra toda sorte
e infortúnio,
já quis um reino,
e apenas uma vida,
percorri, como tudo mais me percorre,
o lado em que as raízes são fortes,
a terra úmida,
o braço aberto.

Muros e desmanches efetuei para verdade do instante
que vi nos teus olhos se tornar eternidade.

Grandioso e querido,
não espero de ti a distância,
tampouco outra certeza,
uma coisa estranha me ressuscita:
faço milagres como tributo
à vaidade de poder sentir
o que existe correr em mim,
mesmo sabendo que um dia
cada árvore marcada pelo vazio
de águas que me ressoa estará
seca como tudo mais. Destruída.

Nesse deserto de cores verdadeiras
que agora atravesso,
pequeninos ramos se alargam e vicejam,
olhos serenos brilham sobre a escuridão,
como frutos.

Novo culto de agora que será sempre,
um templo a ti em mim está erguido,
profanem-se as vestes, as quinquilharias,
que se arraste e limpe todo esse sangue,
tornarei, em tua homenagem,
verdadeiros todos os incêndios,
redivivos os gritos que anunciam a libertação do espírito.

5 comentários:

Fabi disse...

Nossa, vc se superou nessa poesia!

Fabi disse...

Essa é umas das tuas melhores poesias. Mesmo sendo grande ela esta muito bem costurada.
Achei ótimo o tom épico que você empregou aos versos, grandioso e simples ao mesmo tempo, fiquei tocada.

Anônimo disse...

Este certamente é um dos melhores -senão o melhor- poema do Menezes. É ambicioso, porém não se perde rumo ao seu objetivo; permanece fluído do início ao fim, a meu ver, com versos que caminham num ritmo etéreo, sonoro e crescente (característica recorrente nos trabalhos do Menezes), porém mais conciso e de entendimento mais fácil que de costume.
Pode ser descrito como uma espécie de "ode ao esquecimento", mas ao bom esquecimento, aquele que nos deixa alguma coisa perene (aprendizagem). Sobre enterrar algo precioso, mas não retirá-lo de todo da memória, e sim apenas reservar a esse algo um lugar bem guardado e quase inacessível dentro de si mesmo. O que vai se perder nas trevas, afinal, continuará nas trevas a sua existência (não vai deixar de existir).
Um banquete ofertado onde se colhe o mais doce dos méis é também o mais triste (ainda que recompensador) banquete, exatamente porque seu fim (inevitável) será em nostalgia proporcionalmente o que foi em saciedade.
Gosto especialmente (e me identifico) quando a veracidade do desejo é posta em dúvida, já que o que advém dele parece ser apenas uma tormenta que varre a vida. "Porque a beleza de tudo é a sua própria doença". Este verso vem afirmar o quão verdadeiro e inquestionável é esse mesmo desejo anteriormente colocado em jogo. É uma resposta que a alma se prontifica a dar para a dúvida do poeta aflito. Ele sabe que é da dor que nasce a beleza, e que ninguém se lembraria da felicidade se ela existisse para sempre. "Quando as folhas amarelam ao redor da nossa lembrança", é porque o tempo de superação daquele desejo angustiante já encontrou maturação, envelhecimento e beleza. É o tempo trabalhando.
Ao longo desse caminho aparentemente desértico, a vida começa a brotar, como se verifica rumo ao fim, no verso "pequeninos ramos se alargam e vicejam".
Considero a última estrofe, que é o fluxo dramático, em tom épico, atingindo seu ápice, uma pequena surpresa: há a superação sobre a dor memória, porém não existe a superação da memória em si. Não há esquecimento -é o contrário dele o que se atinge quando se caminha muito tempo por desertos e se vê árvores interiores envelhecendo e secando, e a dor se tornando beleza: cria-se um templo interiorizado e imenso ao objeto amado, ainda que se liberte da necessidade dele.
Enfim, é um poema grandioso, bonito e forte. Gostei muito e espero ter sido coerente na minha interpretação.
abs

Anônimo disse...

Independente de juízo crítico, vc mapeou direitinho meu poema; é exatamente o que quero dizer.

Anônimo disse...

Ah, não acho que seja épico; ele tem um tom "pós" tragédia, realmente uma aprendizagem, um crescimento individual pelo sofrimento. Por isso tudo começa do fim, do "depois de tudo".
Menezes