Bem, conversei com o Leo e outros amigos nestes dias a respeito de um texto que o Affonso Romano de Sant'Anna (creio que dispensa apresentações) me enviou depois que eu, há um par de anos, enviei a ele alguns poemas meus para que ele dissesse o que achava. Bem, depois de alguns comentários a respeito do meu trabalho, ele me enviou este texto. É um texto interessante e acho vale à pena postar aqui, já que estamos todos no mesmo barco. Também acho que ele não se importaria, já que este texto foi publicado em suas colunas em jornais, etc, e suspeito que ele queria que isso chegue aos mais variados aspirantes a poetas profissionais. É isso. Leiam. Leiam. Leiam. (Ciro)
ONDE A PORCA TORCE O RABO
Affonso Romano de Sant’Anna
Às vezes, leitores escrevem a mim e a outros escritores, perguntando se podem enviar (ou já enviando) seus textos. Em geral, repetem algumas coisas, que retratam o desconforto dessa situação. Primeiro, que carecem da opinião de alguém mais experimentado, que lhes oriente e, em muitos casos, querem saber se devem ou não continuar a escrever.
Nem sempre são jovens, mas pessoas maduras em quem, de repente, a literatura (ou a liberdade de expressão?) aflorou. Faço o possível para responder. Às vezes sugiro a leitura de vários livros, muitos citados em “A sedução da palavra”(Ed. Letraviva), que tem o propósito expresso de orientar iniciantes e repassar experiências literárias. O ideal é que houvesse uma “clínica de textos”, que acolhesse essa demanda profissionalmente, porque nenhum escritor tem disponibilidade para esse árduo e delicadíssimo trabalho. Seria um trabalho de consultoria, como qualquer outro, com hora marcada, tabela de preço, para dar logo mais seriedade à atividade.
Alguns pedem logo uma orelha ou prefácio, caso o livro seja do agrado. Isto também é complicado. O solicitante tem a ilusão que uma apresentação vai lhe abrir as portas. Não vai. Só vai se o livro for bom mesmo. Neste caso nem precisa de orelha ou prefácio para se impor. Claro, há autores que elogiam todo e qualquer livro, por generosidade ou por não quererem magoar as pessoas.
Quando o autor pergunta se deve continuar ou não a escrever, digo que esta é uma questão que ele, e não outros, deve responder. Dá vontade de lembrar aquele conselho de Rilke ao jovem poeta, que se escrever não for uma necessidade vital, então é mesmo melhor parar e ir cantar noutra freguesia.
Às vezes, os que pedem tal opinião estão num estágio pré-literário.Escrevem só de ouvido.Repetem lugares comuns. Não sabem nem o que é lugar comum ou como lidar com ele. Não estão a par da história literária, dos movimentos que se sucederam, dos diferentes estilos e técnicas. Não são nem sequer leitores, bons leitores, aqueles que convivem e assimilam os grandes e pequenos autores. Pensam que escrevem, mas estão sendo escritos por uma linguagem que já existe. Desconhecem que o escritor é aquele que ocupa um lugar na linguagem. O texto está entre o prosaico de certas letras banais de música e simples(ainda que legítimas) anotações emocionais. Nesses casos não há muito ou nada que fazer. (O mesmo se dá com quem resolve pintar, fazer teatro, música ou o que seja de artístico, movido por impulsos superficiais e descomprometidos).
Mas o caso mais difícil é daqueles que têm realmente talento e já se expressam de uma maneira mais madura e pessoal. Não vamos encontrar em seus trabalhos falhas primárias. Já têm leitura. Conhecem alguns clássicos de ontem e de hoje. Não são incautos. Estão numa situação que é grave e delicada, estão na borda de alguma coisa que pode, ou não, acontecer. Ou seja, podem ou não virar socialmente artistas.
E é aqui que a porca torce o rabo.
Tirando de lado as pessoas que realmente não têm talento, há outras que são capazes de produzir uma pintura ou escultura correta, até com certa inventividade. Pessoas que são capazes de produzir um ou mais contos interessantes, mesmo um romance. Pessoas que podem produzir uma ou outra música que nos diz alguma coisa. E assim por diante, uma peça de teatro ou, cinematograficamente, um curta ou longa. Pessoas, enfim, que podem produzir alguns bons poemas.
Até diria que uma coisa é estar artista e outra é ser artista. Pode uma pessoa numa determinada circunstância ou período de sua vida, eventualmente, estar em condições tais que suas emoções se precipitem em determinadas formas de expressão. É como se tivesse se conectado com forças e energias que a ultrapassam e a resgatam.
Mas uma coisa é a capacidade de fazer algo razoavelmente bem feito num determinado instante. Outra é comprometer-se com um projeto onde vida-e-obra se confundem. É como se tivéssemos achado umas pepitas de ouro na superfície de um terreno. Mas a riqueza está no fundo e exige paciência, técnica e aprofundamento. E é aqui que muitos embatucam, porque achavam que bastava balançar a árvore dourada e os frutos cairiam aos seus pés de Midas.
Ao contrário, daqui para frente é que o desafio vai começar. Agora é que há que atravessar o deserto por quarenta anos e cultivá-lo “como um pomar às avessas”. É como se alguém tivesse as ferramentas, alguns tijolos e pedras: resta uma construção por fazer. Cadê o projeto? E a construção é aquilo que se constrói enquanto se constrói. Sendo a obra de arte, segundo Joyce, uma obra-em-progresso, como diria o nosso Rosa, é travessia.
Por isto, as pessoas que têm alguns dos atributos necessários para se tornarem artistas, num determinado instante encontram-se naquela situação que a antropologia chama de situações limites. Há um ritual a cumprir para se passar de um estágio a outro. Ultrapassar essa linha divisória entre o amadorismo e o profissionalismo, entre o episódico e o sistemático, entre o aleatório e um projeto estético-existencial, eis o desafio. E nisto, de novo, há uma pesada solidão. Solidão dificil de ser compartilhada. Tenho dito a algumas dessas pessoas que surpreendi na soleira desse rito de iniciação: agora depende de você. De você e de uma série de fatores aleatórios. Pois assim como o criador tem que cavar no escuro de si mesmo a sua pretensa riqueza, entrar no sistema literário e artístico é entrar numa selva escura. Talentos podem se perder, ou terem seu percurso mutilado, enquanto outros são espantosamente superestimados.
O artista autêntico, no entanto, tem a coragem e a audácia de abrir e povoar uma clareira ou receber esse raio na cara, não apenas eventualmente, mas a todo instante. Mas isto é altamente perigoso. Diante dessa situação, alguns entram em pânico e se demitem. Abrir-se à arte é dar um salto mortal no escuro, para que todos vejam.
ONDE A PORCA TORCE O RABO
Affonso Romano de Sant’Anna
Às vezes, leitores escrevem a mim e a outros escritores, perguntando se podem enviar (ou já enviando) seus textos. Em geral, repetem algumas coisas, que retratam o desconforto dessa situação. Primeiro, que carecem da opinião de alguém mais experimentado, que lhes oriente e, em muitos casos, querem saber se devem ou não continuar a escrever.
Nem sempre são jovens, mas pessoas maduras em quem, de repente, a literatura (ou a liberdade de expressão?) aflorou. Faço o possível para responder. Às vezes sugiro a leitura de vários livros, muitos citados em “A sedução da palavra”(Ed. Letraviva), que tem o propósito expresso de orientar iniciantes e repassar experiências literárias. O ideal é que houvesse uma “clínica de textos”, que acolhesse essa demanda profissionalmente, porque nenhum escritor tem disponibilidade para esse árduo e delicadíssimo trabalho. Seria um trabalho de consultoria, como qualquer outro, com hora marcada, tabela de preço, para dar logo mais seriedade à atividade.
Alguns pedem logo uma orelha ou prefácio, caso o livro seja do agrado. Isto também é complicado. O solicitante tem a ilusão que uma apresentação vai lhe abrir as portas. Não vai. Só vai se o livro for bom mesmo. Neste caso nem precisa de orelha ou prefácio para se impor. Claro, há autores que elogiam todo e qualquer livro, por generosidade ou por não quererem magoar as pessoas.
Quando o autor pergunta se deve continuar ou não a escrever, digo que esta é uma questão que ele, e não outros, deve responder. Dá vontade de lembrar aquele conselho de Rilke ao jovem poeta, que se escrever não for uma necessidade vital, então é mesmo melhor parar e ir cantar noutra freguesia.
Às vezes, os que pedem tal opinião estão num estágio pré-literário.Escrevem só de ouvido.Repetem lugares comuns. Não sabem nem o que é lugar comum ou como lidar com ele. Não estão a par da história literária, dos movimentos que se sucederam, dos diferentes estilos e técnicas. Não são nem sequer leitores, bons leitores, aqueles que convivem e assimilam os grandes e pequenos autores. Pensam que escrevem, mas estão sendo escritos por uma linguagem que já existe. Desconhecem que o escritor é aquele que ocupa um lugar na linguagem. O texto está entre o prosaico de certas letras banais de música e simples(ainda que legítimas) anotações emocionais. Nesses casos não há muito ou nada que fazer. (O mesmo se dá com quem resolve pintar, fazer teatro, música ou o que seja de artístico, movido por impulsos superficiais e descomprometidos).
Mas o caso mais difícil é daqueles que têm realmente talento e já se expressam de uma maneira mais madura e pessoal. Não vamos encontrar em seus trabalhos falhas primárias. Já têm leitura. Conhecem alguns clássicos de ontem e de hoje. Não são incautos. Estão numa situação que é grave e delicada, estão na borda de alguma coisa que pode, ou não, acontecer. Ou seja, podem ou não virar socialmente artistas.
E é aqui que a porca torce o rabo.
Tirando de lado as pessoas que realmente não têm talento, há outras que são capazes de produzir uma pintura ou escultura correta, até com certa inventividade. Pessoas que são capazes de produzir um ou mais contos interessantes, mesmo um romance. Pessoas que podem produzir uma ou outra música que nos diz alguma coisa. E assim por diante, uma peça de teatro ou, cinematograficamente, um curta ou longa. Pessoas, enfim, que podem produzir alguns bons poemas.
Até diria que uma coisa é estar artista e outra é ser artista. Pode uma pessoa numa determinada circunstância ou período de sua vida, eventualmente, estar em condições tais que suas emoções se precipitem em determinadas formas de expressão. É como se tivesse se conectado com forças e energias que a ultrapassam e a resgatam.
Mas uma coisa é a capacidade de fazer algo razoavelmente bem feito num determinado instante. Outra é comprometer-se com um projeto onde vida-e-obra se confundem. É como se tivéssemos achado umas pepitas de ouro na superfície de um terreno. Mas a riqueza está no fundo e exige paciência, técnica e aprofundamento. E é aqui que muitos embatucam, porque achavam que bastava balançar a árvore dourada e os frutos cairiam aos seus pés de Midas.
Ao contrário, daqui para frente é que o desafio vai começar. Agora é que há que atravessar o deserto por quarenta anos e cultivá-lo “como um pomar às avessas”. É como se alguém tivesse as ferramentas, alguns tijolos e pedras: resta uma construção por fazer. Cadê o projeto? E a construção é aquilo que se constrói enquanto se constrói. Sendo a obra de arte, segundo Joyce, uma obra-em-progresso, como diria o nosso Rosa, é travessia.
Por isto, as pessoas que têm alguns dos atributos necessários para se tornarem artistas, num determinado instante encontram-se naquela situação que a antropologia chama de situações limites. Há um ritual a cumprir para se passar de um estágio a outro. Ultrapassar essa linha divisória entre o amadorismo e o profissionalismo, entre o episódico e o sistemático, entre o aleatório e um projeto estético-existencial, eis o desafio. E nisto, de novo, há uma pesada solidão. Solidão dificil de ser compartilhada. Tenho dito a algumas dessas pessoas que surpreendi na soleira desse rito de iniciação: agora depende de você. De você e de uma série de fatores aleatórios. Pois assim como o criador tem que cavar no escuro de si mesmo a sua pretensa riqueza, entrar no sistema literário e artístico é entrar numa selva escura. Talentos podem se perder, ou terem seu percurso mutilado, enquanto outros são espantosamente superestimados.
O artista autêntico, no entanto, tem a coragem e a audácia de abrir e povoar uma clareira ou receber esse raio na cara, não apenas eventualmente, mas a todo instante. Mas isto é altamente perigoso. Diante dessa situação, alguns entram em pânico e se demitem. Abrir-se à arte é dar um salto mortal no escuro, para que todos vejam.
4 comentários:
Texto ótimo!
Eu acho que a missão do poeta é fazer versos. Ele deve fazer versos sobre o que entender: se passar uma pulga e ele achar que a pulga é engraçada, ele faz um poema, uma ode à pulga. Agora, vendo um rio poluído, uma árvore destruída inutilmente, se ele sentir uma emoção correspondente, se se revoltar contra aquilo e sentir a onda poética subir, é legítimo que escreva sobre isso. Num plano maior, sobre a ameaça nuclear, sobre todas as outras ameaças políticas e guerreiras que pairam sobre o mundo. Necessariamente ele não tem a missão de corrigir o mundo, não creio seja essa a missão do poeta. Será uma ilusão supor que a poesia pode contribuir para o direcionamento do mundo num sentido mais justo. Eu acho que a função do poeta é produzir emoção, é despertar no próximo um sentimento de beleza, de alegria, de tristeza — mas sobretudo um sentimento de comunhão com a vida. A vida é múltipla, complexa, não se limita à restauração de direitos democráticos ou a uma ordem em que todas as pessoas respeitem a natureza. Viver é o ato mais importante da vida, e viver envolve todos os compromissos, todas as liberdades possíveis. Então eu acho que o poeta cumprirá melhor sua missão se fizer versos e esses versos forem bons. Se os seus temas coincidirem com os problemas do mundo de hoje, tanto melhor; mas se ele contar apenas a sua dor-de-cotovelo, a sua emoção particular, ainda assim estará fazendo um bem à humanidade. Porque a pessoa que sentir aquela mesma emoção, o mesmo sofrimento de amor, a mesma dor física ou de saudade lendo o poeta — se ele realizou bem o seu poema —, essa pessoa se sentirá confortada. Acho que esse é um dos grandes benefícios da literatura: causar bem aos outros — não apenas politicamente, socialmente, mas pelo simples fato de transmitir uma vivência, uma emoção que é assimilada pelo próximo.
Concordo com o Drummond
É difícil pensar em uma função política para a poesia hoje em dia. Ela pode ser política, mas não precisa necessariamente ser. Porém, temos que admitir que a criação da beleza tem sim uma função social. Tenho certeza que, se todos fossem criadores de beleza (artistas), as pessoas se envolveriam em uma inter-comunicação mais sutil, porém mais profunda.
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