12/06/2008

Cartas da Alma

Dobro com zelo o papel fino e delicado
que constitui a carta da alma.
Sinto-lhe relevada entre os dedos,
impregnando-se, como cola, sobre minha pele.
Adoço-me com seu mel espesso, sua seiva maturada no limbo da [alma.
Dá-me enorme prazer costurar uma carta da alma,
a partir dos ecos da alma,
que se cristalizam num tecido frágil e sofisticado.
Murmúrios da alma, que aportam confusos, em torvelinho.
Sobreviventes de ciclones:
sei bem o que é o regozijo provocado pela língua da alma.
Um lamber energizado e letal.
Veneno que congela, choca, paralisa.
O tecido de uma carta da alma
se contemporiza em seus labores aracnídeos.
Beijo com candura e desejo esse objeto
que não está mais em mim.
A voz que se tinge, diamante, no corpo da carta, já não é mais a
[minha, distanciada a galopes.
O corpo da carta, mineralizado, e seu processo de decantação, se [estirpam.
Minha palavra, prisioneiro de grades de papel, se esfarela.
E o vento que leva a poeira desses fósseis da alma
tem o trabalho de evacuar estes detritos sólidos da alma,
participando da desintegração da arte volúvel que é a carta da alma.
Quando leio as palavras da carta da minha alma,
já não sou eu que estou sendo lido,
e nem é a carta quem me diz.

Ciro I. Marcondes

5 comentários:

Anônimo disse...

A idéia do poema como carta que se escreve para si mesmo, e que é capaz de eventualmente causar estranhamento até mesmo naquele que a escreveu, passado algum tempo, é excelente. O modo como você descreve essa espécie de "arqueologia íntima" que a poesia proporciona é preciso.
Um grande abraço, eiliko

Anônimo disse...

desde antes dos primeiros encontros do Nexo, e olha que já se vão aí pelo menos mais de cinco anos, me chama a atenção o lance do clichê, de como via em algumas poesias - sobretudo minhas - a utilização de palavras que carregam toda um carga pré-significativa e que, ao inserir essas palavras em meus poemas, eu acabava, sem querer – isso é que o pior -, por inserir também essa carga. dei o exemplo da palavra sonho, que, geralmente quando é usada num poema, não traz nada além de lugares-comuns (nesse caso, tem-se o clássico clichê da falta de significação). tirem-se daí as exceções que confirmam a regra, tais como ‘the dream is over’, e a respectiva genial resposta do gil, ‘o sonho acabou, quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”. daí, num poema metalíngua, escrevi uma meta: ‘tirar do clichê o que o clichê não guarda’.
na real, essa reflexão é antiga pacas. pros poetas ligados à semiótica, ela é mais que infantil. cortazar tem ótimos textos sobre ela.
esses prolegômenos são apenas pra adentrar no pitaco que darei sobre o cartas da alma. me assustei, logo de início, com a palavra alma no título e em todo o poema. porque alma é uma das palavras mais clichês que existem - quase igual a sonho. é o velho arquétipo do platão, preenchido com maestria pelo cristianismo. então, de posse dessa carga, fui ler o poema e me estrepei. porque a ‘alma’ do ciro não é a alma anima dos dicionários. ou melhor, é e não é. a palavra sofre, no transcorrer do texto uma dessemantização e uma ressemantização, que, se perde seu significado padrão, digamos assim, ganha outro significado, o qual, embora fundamentalmente distinto do primeiro, dele é inseparável. porque a alma do poema não é a tradicional platônica-cristã. é outra, que, ao mesmo tempo em que não é ideal – a alma tem língua -, que se confunde com o corpo, dele também se separa. na língua da alma, o poema dialoga com diversas fontes: augusto língua paralítica dos anjos; eiliko língua zumbi, ricardo se recordo quem fui reis.
e olhe mire e veja que a ‘alma’ é secundária no poema, pois O LANCE É A VOZ DA ALMA. o eiliko pegou bem essa metalíngua.
além da re-visão da alma, há, pois, a de um tema aparentemente banal, do poeta que se estranha com a própria poesia. e há mais, porque além de ‘já não ser eu que estou sendo lido’, ‘nem é a carta que me diz’. se não é a carta o que diz, o que diz? o poema não se fecha. como joão cabral, i. ciro usa uma intricada arquitetura para desconstituir e reconstruir algo. mas diferente do cabral, o algo do Ciro não é congruente. está mais para o sistema de contradições do proudhon do que para a doutrina do marx.
(continua)

Anônimo disse...

Sensacional! Comentário melhor que o poema, com certeza! Aguardo o resto!

Juliano Flávio disse...

Filosofia poética ou poesia para filósofos? Muito boa a desintegração poeta/poema, a descrição do fato nos deixa atordoados, o quê é isso que ganha um certo movimento sem a nossa ajuda? Às vezes isso ocorre com meus poemas e ficou muito claro com o poema do Ciro, ou seja, passamos então a não entender nada do que achávamos que entendíamos, ou talvez, nossa compreensão seja volátil e temporária. Muito boa Ciro.

Anônimo disse...

generoso e modesto i. Ciro, seu poema merece pelo menos uma dissertação, trabalho que deixarei para um escafandrista futuro. minha continuação virá em forma de poema. aguarde!